A escolha conjugal, um pilar fundamental da organização social e da vida individual, passou por transformações profundas no século XXI, desafiando concepções tradicionais e abrindo novos campos de investigação para a sociologia. Longe de ser um mero ato privado e espontâneo, a decisão de com quem se casar ou formar uma união afetiva é intrinsecamente moldada por forças sociais, culturais, econômicas e tecnológicas. Este artigo científico explora a sociologia da escolha conjugal na contemporaneidade, analisando como fenômenos como a individualização, a crescente autonomia dos sujeitos, a desinstitucionalização do casamento e a proliferação de novas tecnologias de comunicação e relacionamento reconfiguram os padrões de formação de pares. Serão discutidas as persistências e mutações da homogamia (escolha de parceiros semelhantes) e da heterogamia (escolha de parceiros diferentes), com foco nas dimensões de classe social, etnia, religião, educação e, crescentemente, capital cultural e erótico. A influência das mídias sociais e, em particular, dos aplicativos de relacionamento, será examinada em termos de seu impacto na ampliação do campo de busca de parceiros, na velocidade das interações e na superficialidade/profundidade dos vínculos. O artigo também abordará as interseções da escolha conjugal com questões de gênero e sexualidade, reconhecendo a crescente diversidade das uniões e os desafios de uma sociologia inclusiva. Por fim, serão delineados os dilemas e contradições dessa nova paisagem da escolha, onde a promessa de liberdade e autoexpressão coexiste com novas formas de ansiedade, exclusão e a complexidade de construir relações afetivas duradouras em um mundo volátil.
1. Introdução
A escolha de um parceiro para a vida, seja por meio do casamento formal, da união estável ou de outras formas de coabitação, é um dos eventos mais significativos na trajetória individual e uma força motriz essencial para a reprodução social. Ao longo da história, essa escolha foi predominantemente ditada por arranjos familiares, normas sociais rígidas, considerações econômicas e expectativas de classe. Contudo, o século XXI testemunha uma profunda reconfiguração dessa dinâmica, impulsionada por transformações sociais, culturais, tecnológicas e demográficas que desafiam as abordagens sociológicas tradicionais.
A sociologia da escolha conjugal na contemporaneidade é um campo em efervescência, buscando compreender como indivíduos navegam por um vasto e, por vezes, labiríntico "mercado de casamentos" (Becker, 1973) que se expande para além das fronteiras geográficas e sociais. A ascensão da individualização, conceito cunhado por autores como Ulrich Beck e Anthony Giddens, postula que as vidas dos indivíduos estão cada vez menos atreladas a identidades coletivas e normas predeterminadas, culminando em uma maior autonomia e, paradoxalmente, em maior responsabilidade pessoal pela construção de suas biografias (Beck & Beck-Gernsheim, 2002; Giddens, 1991). No contexto das relações afetivas, isso se traduz em uma busca por parceiros que não apenas complementem, mas que também validem e reforcem a identidade individual e os projetos de vida.
Paralelamente, a desinstitucionalização do casamento (Cherlin, 2004) – a diminuição da pressão social e legal para se casar, bem como a aceitação crescente de divórcios e outras formas de relacionamento – oferece aos indivíduos uma liberdade sem precedentes. No entanto, essa liberdade não vem sem suas complexidades. A escolha, antes um processo relativamente constrito, torna-se agora um campo de negociação constante, reflexividade e, por vezes, ansiedade.
A irrupção da tecnologia digital, especialmente das mídias sociais e dos aplicativos de relacionamento, é outro vetor transformador. Essas plataformas não apenas expandiram o "pool" de potenciais parceiros, mas também redefiniram as interações iniciais, a apresentação do "eu" e as expectativas sobre a formação de vínculos. A velocidade, a superficialidade e a gamificação dessas interações trazem à tona novas questões sobre a qualidade dos laços formados e a resiliência das relações em um ambiente de conectividade constante.
Este artigo se propõe a analisar a sociologia da escolha conjugal no século XXI, investigando as forças que a moldam e os seus resultados. Abordaremos a persistência e as novas formas de homogamia e heterogamia, a influência decisiva das tecnologias digitais, as intersecções com gênero e sexualidade em uma paisagem de crescente diversidade familiar, e as novas dinâmicas do amor romântico e do compromisso. O objetivo é oferecer uma compreensão multifacetada das complexidades envolvidas na formação de pares na sociedade contemporânea.
2. A Individualização e a Desinstitucionalização do Casamento
A análise da escolha conjugal no século XXI exige um olhar atento para dois macroprocessos sociais interligados: a individualização e a desinstitucionalização do casamento.
2.1. A Era da Individualização
Para Ulrich Beck (Beck & Beck-Gernsheim, 2002), a modernidade tardia é caracterizada por um processo de individualização, no qual os indivíduos são cada vez mais responsáveis por suas próprias biografias, antes ditadas por classes sociais, estratos ou papéis predefinidos. A vida torna-se um projeto de autoformação, e as relações íntimas são componentes centrais desse projeto. O casamento, nessa perspectiva, deixa de ser uma imposição social ou econômica para se tornar uma escolha reflexiva, orientada pela busca de realização pessoal e emocional.
Anthony Giddens (1991) ecoa essa ideia com o conceito de "relação pura" (pure relationship), um vínculo que é mantido não por fatores externos como lei, tradição ou dever, mas pela satisfação mútua que os parceiros obtêm da própria relação. O amor romântico, embora ainda um ideal poderoso, transforma-se em um "amor confluente" (confluent love), que é ativo, contingente e negociável. Ele não é mais um destino final, mas um processo contínuo de construção e reconstrução que exige esforço e reflexividade constantes de ambos os parceiros. A liberdade de entrada e saída da relação é um dos seus pilares, o que também implica maior fragilidade.
Essa ênfase na autonomia individual e na busca por realização pessoal impacta diretamente a escolha conjugal. Os critérios de seleção de parceiros se deslocam de considerações pragmáticas (status, riqueza, família) para atributos mais subjetivos (compatibilidade emocional, interesses em comum, química pessoal).
2.2. A Desinstitucionalização do Casamento
Robert Cherlin (2004) argumenta que o casamento tem passado por um processo de desinstitucionalização, perdendo parte de suas normas e regras socialmente compartilhadas. Embora o casamento ainda seja valorizado e praticado, sua obrigatoriedade social e moral diminuiu. Isso se manifesta em:
Aumento da coabitação: Muitos casais vivem juntos sem se casar formalmente, muitas vezes como um estágio pré-matrimonial ou como uma alternativa permanente.
Aumento das taxas de divórcio: O divórcio tornou-se mais socialmente aceitável e legalmente mais fácil, indicando que o casamento é menos uma união "para sempre" e mais uma que pode ser dissolvida se não atender às necessidades individuais.
Declínio das taxas de casamento: Em muitos países ocidentais, a proporção de pessoas que se casam, e a idade média ao primeiro casamento, aumentaram significativamente.
Diversificação das formas familiares: O casamento é apenas uma das muitas formas de arranjo familiar, coexistindo com uniões estáveis, monoparentalidade, famílias reconstituídas e, crescentemente, o casamento e uniões homoafetivas.
A desinstitucionalização não significa o fim do casamento, mas sim sua transformação de uma instituição rígida para um arranjo mais flexível e pessoalmente significativo. Isso coloca uma maior carga sobre os indivíduos para negociar os termos de seus próprios relacionamentos, sem o apoio de roteiros sociais claros. A escolha conjugal, portanto, torna-se um ato de constante avaliação e adaptação.
3. Persistências e Mutações da Homogamia e Heterogamia
Apesar da crescente autonomia na escolha, os padrões de seleção de parceiros não são aleatórios. A homogamia – a tendência de indivíduos se unirem a parceiros com características semelhantes – persiste, embora com algumas mutações.
3.1. Homogamia Socioeconômica e Demográfica
Educação: A homogamia educacional é uma das formas mais robustas e crescentes. Indivíduos com níveis de escolaridade semelhantes tendem a se casar. Isso tem implicações significativas para a desigualdade social, pois casais com alta escolaridade e renda conjunta concentram mais capital, enquanto casais com baixa escolaridade podem enfrentar maiores desafios econômicos (Schwartz & Mare, 2012).
Classe Social e Renda: Embora a mobilidade social possa levar a alguma heterogamia, a tendência de casais se formarem dentro de estratos socioeconômicos similares permanece forte, reforçando as clivagens de classe.
Etnia e Religião: A homogamia étnica e religiosa, embora em declínio em algumas sociedades multiculturais, ainda é significativa. Fatores culturais e de identidade continuam a desempenhar um papel na escolha do parceiro.
Idade: A homogamia por idade permanece predominante, embora diferenças de idade sejam mais aceitáveis socialmente do que em épocas anteriores.
3.2. Novas Formas de Homogamia e Capital Erótico/Cultural
Com a individualização, surgem novas formas de homogamia baseadas em afinidades mais subjetivas:
Interesses e Estilos de Vida: A compatibilidade em hobbies, valores, visões de mundo e estilos de vida torna-se um critério cada vez mais importante. Pessoas buscam parceiros que "compartilhem seus mundos".
Capital Cultural: A afinidade em termos de gostos culturais (música, arte, literatura, cinema) e consumo cultural pode ser um forte preditor da escolha conjugal.
Capital Erótico (Catherine Hakim, 2010): A atratividade física e social, que combina beleza, encanto, apresentação e sexualidade, é um fator de valor crescente no "mercado de casamentos", especialmente em plataformas digitais onde a primeira impressão visual é crucial. Embora não seja estritamente homogâmico no sentido tradicional, indivíduos com capital erótico similar tendem a se atrair mutuamente.
3.3. Heterogamia e Suas Implicações
A heterogamia (casamento entre indivíduos com características diferentes) também é um fenômeno notável.
Heterogamia de Idade: Casais com grandes diferenças de idade são mais comuns, refletindo uma maior aceitação social e a ênfase na escolha pessoal.
Heterogamia Educacional/Econômica: Embora menos comum que a homogamia, a heterogamia pode ocorrer, por exemplo, em casamentos entre indivíduos de diferentes classes sociais, muitas vezes impulsionados por outros "capitais" (e.g., capital erótico compensando capital econômico).
"Hipergênese" Feminina: Em muitos países, as mulheres tendem a ter mais escolaridade que os homens. Isso leva a um fenômeno onde mulheres mais escolarizadas podem "casar para baixo" em termos educacionais para encontrar um parceiro masculino, ou a um aumento da homogamia educacional, com homens buscando parceiras mais escolarizadas (Blossfeld & Timm, 2003).
💭 10 mitos sobre a escolha conjugal no século XXI
💘 “Você ama quem quiser.”
Parece liberdade, mas seu desejo é moldado por cultura, mídia e algoritmos que limitam suas escolhas.
💸 “Interesse financeiro é coisa do passado.”
A ideia de amor puramente romântico ignora o papel do capital simbólico e econômico nas relações.
🧬 “A química decide tudo.”
Você acha que basta sentir o “clique”? Mas as estruturas sociais te ensinam o que é atraente.
💍 “Relacionamento bom é o que vira casamento.”
Ainda acredita que só o casamento valida um amor? Relações não precisam seguir esse modelo para ter valor.
📱 “App de namoro é só pegação.”
Você julga os apps como fúteis, mas eles também revelam critérios profundos de escolha social.
👫 “O amor supera todas as diferenças.”
Você pensa que basta amor, mas classe, raça e religião ainda pesam nas uniões.
🎭 “Você é autêntico no amor.”
Sua performance amorosa é mais estratégica do que você imagina — e socialmente aprendida.
👩⚖️ “Gênero já não influencia mais.”
Você acredita que as escolhas são iguais para todos? Mas mulheres ainda enfrentam pressões específicas.
🏡 “Família não interfere nas escolhas.”
Você se diz independente, mas os laços familiares ainda influenciam suas decisões afetivas.
🌍 “Vivemos uma era livre de preconceitos.”
Mesmo que o discurso mude, desigualdades persistem e afetam quem você escolhe — e quem te escolhe.
🔎 10 verdades elucidadas sobre a escolha conjugal no século XXI
🧠 Suas escolhas são moldadas socialmente.
O desejo não nasce no vácuo. Ele é atravessado por cultura, vivência, classe e expectativas.
🔄 Você vive em um mercado afetivo.
As relações amorosas funcionam como trocas simbólicas em que capital social, beleza e status contam.
📲 Algoritmos influenciam seu coração.
O que você vê nos apps, redes e até no feed altera quem aparece como “possível amor”.
🎥 Referências culturais moldam o ideal.
Filmes, novelas e memes participam da criação do tipo de parceiro(a) que você busca.
💬 O discurso romântico ainda pesa.
Mesmo com discursos modernos, a ideia de “alma gêmea” ainda é forte na sua imaginação amorosa.
🎓 Escolaridade afeta afinidades.
O nível educacional afeta gostos, valores e redes de contato — e isso impacta com quem você se envolve.
🔍 A escolha conjugal é também uma escolha política.
Ela revela visões de mundo e até posicionamentos ideológicos, mesmo que inconscientes.
🧭 A busca por afinidade é seletiva.
Você diz querer alguém parecido, mas isso também pode significar alguém da sua bolha.
👩❤️💋👩 Diversidade nas uniões cresce.
Hoje, casais homoafetivos, relações abertas e poliamorosas desafiam o modelo tradicional.
🧱 As barreiras invisíveis continuam firmes.
Racismo, machismo, classismo e homofobia ainda estruturam — sutilmente — as escolhas amorosas.
🚀 10 projeções de soluções sociológicas para o futuro das relações
🤝 Educação afetiva nas escolas.
Você aprende a amar com exemplos frágeis. Incluir o tema nos currículos fortalece escolhas mais conscientes.
📡 Transparência nos algoritmos de match.
Compreender como funcionam os filtros e sugestões pode devolver parte do controle para você.
🏳️🌈 Normalização da diversidade relacional.
Reconhecer modelos não tradicionais fortalece sua liberdade de escolha sem culpa social.
📚 Incentivo à leitura crítica de romances.
Você consome ficções que moldam desejos. Ler criticamente evita padrões ilusórios.
🧠 Autoconhecimento incentivado nas juventudes.
Quanto mais cedo você se entende, mais escolhas afetivas condizentes com seu eu real você faz.
🏙️ Políticas públicas que protejam múltiplos arranjos.
Se o Estado reconhece diferentes formas de família, você se sente mais livre para escolher.
🎨 Reeducação de gênero nos meios afetivos.
Desconstruir o machismo e os papéis tradicionais pode gerar mais equidade nas relações.
🔍 Plataformas de relacionamento mais éticas.
Apps que priorizem afinidades reais e contexto social podem gerar matches mais autênticos.
🌐 Ambientes online com menos performatividade.
Espaços menos tóxicos e mais sinceros online facilitam relações mais verdadeiras.
🧭 Valorização de trajetórias, não só atributos.
Você pode passar a olhar para a história da pessoa, e não apenas aparência ou currículo amoroso.
📜 10 mandamentos contemporâneos da escolha conjugal
💬 Honrarás o diálogo acima da fantasia.
Você deixará de esperar por gestos mágicos e dará espaço para conversas reais e construtivas.
🔓 Não prenderás teu coração a um único modelo.
Você aceitará que existem múltiplas formas válidas de amar e de construir relações.
🧠 Buscarás autoconhecimento antes de par ideal.
Você entenderá que sua busca começa por si — não pelo outro.
🧩 Reconhecerás a complexidade da afinidade.
Você aprenderá que afinidade envolve mais que gostos iguais — envolve visão de mundo.
🏛️ Desconstruirás heranças patriarcais.
Você romperá com expectativas ultrapassadas e desigualdades nas decisões afetivas.
📱 Usarás apps com consciência e critério.
Você filtrará além do algoritmo e reconhecerá o que é superficial e o que tem potencial.
🎓 Valorizarás o crescimento mútuo, não só o status.
Você vai preferir relações que somam trajetórias e não só acumulam aparências.
🌱 Cultivarás vínculos em vez de fantasias.
Você escolherá pessoas que compartilhem valores e construções reais — não apenas sonhos.
🏳️🌈 Respeitarás a diversidade de amores.
Você acolherá e aprenderá com modelos diferentes do seu — sem julgamentos.
🌍 Estudarás a si mesmo tanto quanto o mundo.
Você vai perceber que o afeto é também um ato político, social e profundamente humano.
4. O Impacto das Tecnologias Digitais na Escolha Conjugal
As plataformas digitais, desde as redes sociais generalistas até os aplicativos de relacionamento especializados, transformaram fundamentalmente a forma como as pessoas conhecem e selecionam seus parceiros.
4.1. Redes Sociais e o Campo de Busca
Mídias sociais como Facebook, Instagram e X (antigo Twitter) expandiram as redes sociais dos indivíduos, permitindo contato com pessoas fora de seus círculos sociais imediatos. Elas funcionam como "vitrines sociais", onde os indivíduos curam suas identidades e estilos de vida, tornando-se uma ferramenta inicial para a prospecção de parceiros e a avaliação preliminar de compatibilidade através de "investigação social" (stalking light).
4.2. Aplicativos de Relacionamento: A Gamificação do Amor
Aplicativos como Tinder, Bumble, Happn, Grindr e Hinge, entre outros, são o epicentro da revolução na escolha conjugal.
Ampliação do "Pool" de Parceiros: Superam as limitações geográficas e sociais, expondo os usuários a um número massivo de potenciais parceiros que, de outra forma, nunca encontrariam.
Visualidade e Primeira Impressão: A apresentação visual (fotos) é primordial, seguida por biografias concisas. Isso valoriza o capital erótico e a capacidade de autopromoção.
Gamificação: O ato de "deslizar" (swiping) para a direita ou esquerda introduz elementos de jogo, tornando a busca por parceiros uma atividade viciante e, por vezes, superficial (Illouz, 2012).
Eficiência e Seleção Rápida: Permitem uma triagem rápida de potenciais parceiros, economizando tempo, mas também incentivando a impaciência e a descartabilidade.
"Paradoxo da Escolha": Embora ofereçam mais opções, o excesso de escolhas pode levar à paralisia da decisão, insatisfação crônica e uma busca incessante por uma opção "melhor", diminuindo o compromisso (Schwartz, 2004).
Comunicação Mediada: As interações iniciais ocorrem via texto, o que pode facilitar a conexão para alguns, mas também distorcer a percepção da pessoa e dificultar a construção de intimidade real antes do encontro físico.
4.3. Algoritmos e Personalização
Os algoritmos por trás desses aplicativos buscam "otimizar" o matching, aprendendo com as preferências dos usuários. Isso pode levar a:
Câmaras de Eco: Se os algoritmos tendem a apresentar perfis semelhantes aos que o usuário já interagiu, pode reforçar a homogamia e limitar a exposição à diversidade.
Viés Algorítmico: Se os dados de treinamento dos algoritmos refletem preconceitos sociais (e.g., em relação a etnia, gênero, tipo físico), eles podem perpetuar ou amplificar esses vieses nas sugestões de matches.
4.4. A Questão da Superficialidade vs. Profundidade
Uma crítica comum aos aplicativos é que eles promovem a superficialidade e a "cultura do engate" (hookup culture), diminuindo o interesse em compromissos de longo prazo. No entanto, pesquisas mostram que muitos usuários de aplicativos buscam relacionamentos sérios e que os resultados são mistos, com sucesso e frustração (Rosenfeld et al., 2019). A tecnologia é uma ferramenta; o que os usuários fazem com ela ainda é moldado por suas intenções e características pessoais.
5. Gênero, Sexualidade e a Diversidade da Escolha Conjugal
O século XXI também é marcado por uma visibilidade e aceitação crescentes da diversidade de gênero e sexualidade, impactando diretamente a sociologia da escolha conjugal.
5.1. Casamento e Uniões Homoafetivas
A legalização do casamento e/ou união estável homoafetiva em muitos países transformou a paisagem da escolha conjugal para indivíduos LGBTQIA+. Isso não apenas concedeu direitos legais e sociais, mas também normalizou e validou essas relações, permitindo que casais do mesmo sexo construam e celebrem seus vínculos publicamente. A pesquisa sobre a dinâmica de escolha conjugal em casais homoafetivos revela padrões tanto de semelhança quanto de diferença em relação aos casais heterossexuais (Reczek et al., 2015).
5.2. Papéis de Gênero na Escolha
Embora a autonomia na escolha seja crescente, os padrões de gênero ainda influenciam significativamente as dinâmicas de formação de pares:
Expectativas de Gênero: Homens e mulheres ainda enfrentam diferentes expectativas sociais em relação ao comportamento de flerte, iniciativa e demonstração de interesse.
Valor de Mercado: O "valor de mercado" em aplicativos de relacionamento pode ser diferente para homens e mulheres, com homens frequentemente deslizando para a direita em um número maior de perfis, e mulheres recebendo mais matches, mas enfrentando desafios de qualidade nas interações (OkCupid, 2016).
Divisão de Papéis: Mesmo em casais modernos, a negociação da divisão do trabalho doméstico e do cuidado com os filhos continua sendo um ponto de tensão e pode influenciar a satisfação e a permanência na união (Gershuny, 2000).
5.3. Interseccionalidade
A escolha conjugal não pode ser compreendida sem considerar a interseccionalidade, ou seja, como diferentes categorias sociais (gênero, raça, classe, sexualidade, deficiência) se interligam e criam experiências únicas de privilégio ou desvantagem no "mercado de casamentos". Mulheres negras, por exemplo, podem enfrentar desafios distintos na busca por parceiros em comparação com mulheres brancas, devido a preconceitos raciais e de gênero combinados.
6. Amor Romântico, Compromisso e Vulnerabilidade
Apesar da desinstitucionalização e da individualização, o ideal do amor romântico continua a ser uma força poderosa na escolha conjugal. No entanto, sua realização e a natureza do compromisso são agora mais complexas.
6.1. O Amor Romântico como Ideal Persistente
O amor romântico, com sua ênfase na paixão, intimidade e exclusividade, permanece como o ideal predominante para a formação de pares em muitas sociedades ocidentais. As pessoas ainda buscam uma "alma gêmea" ou um parceiro que as complete emocionalmente (Giddens, 1991). No entanto, a forma como esse ideal é buscado e mantido mudou.
6.2. O Compromisso em um Mundo Líquido
Zygmunt Bauman (2003) descreve as relações na modernidade líquida como caracterizadas pela fragilidade, volatilidade e uma cultura de "conectar e desconectar". O compromisso, nesse contexto, torna-se uma commodity negociável, e não mais uma promessa incondicional. Isso gera:
Ansiedade da Escolha: A constante disponibilidade de "melhores" opções pode minar o compromisso com o parceiro atual.
Cultura da Descartabilidade: A facilidade de encontrar novos parceiros online pode levar a um descarte mais rápido de relações quando surgem dificuldades.
Medo de Perder (FOMO - Fear Of Missing Out): A preocupação de que sempre existe alguém "melhor" ou mais compatível à espera, o que pode inibir a profundidade do investimento emocional.
6.3. A Vulnerabilidade e a Necessidade de Reflexividade
Nesse cenário de maior liberdade e volatilidade, os indivíduos enfrentam uma maior vulnerabilidade emocional. A construção de um relacionamento duradouro e satisfatório exige uma alta dose de reflexividade – a capacidade de monitorar, avaliar e ajustar continuamente a relação e a própria participação nela. O sucesso da escolha conjugal depende não apenas de encontrar o "parceiro certo", mas de construir ativamente uma "relação certa" (Giddens, 1991).
7. Dilemas e Contradições da Escolha Conjugal no Século XXI
A nova paisagem da escolha conjugal é marcada por uma série de dilemas e contradições:
Liberdade vs. Paralisia: A maior liberdade de escolha pode levar à dificuldade de escolha ou à insatisfação pós-escolha.
Conectividade vs. Solidão: A facilidade de conectar-se digitalmente pode, paradoxalmente, aumentar sentimentos de solidão e desconexão real.
Autenticidade vs. Performance: A necessidade de "vender" a si mesmo em plataformas digitais pode gerar uma tensão entre ser autêntico e performar uma identidade idealizada.
Otimização vs. Organicidade: A busca algorítmica pelo parceiro "perfeito" pode colidir com a natureza orgânica, imprevisível e imperfeita das relações humanas.
Exclusão Digital: Aqueles que não têm acesso ou não se sentem confortáveis com as plataformas digitais podem ser marginalizados no "mercado de casamentos" atual.
A sociologia da escolha conjugal no século XXI precisa investigar como os indivíduos negociam essas tensões, quais estratégias são empregadas para construir relações significativas e como as desigualdades sociais se reproduzem ou são contestadas nesse novo contexto.
8. Conclusão
A sociologia da escolha conjugal no século XXI é um campo dinâmico que reflete as profundas transformações pelas quais as sociedades modernas estão passando. A individualização e a desinstitucionalização do casamento liberaram os indivíduos de normas rígidas, concedendo-lhes uma autonomia sem precedentes na seleção de seus parceiros. No entanto, essa liberdade vem acompanhada de novas complexidades e responsabilidades.
A persistência da homogamia, especialmente a educacional e socioeconômica, sugere que as estruturas sociais continuam a moldar as escolhas, mesmo que de forma mais sutil. Contudo, novas formas de homogamia, baseadas em capital cultural e erótico, emergem, impulsionadas pela lógica das plataformas digitais. A ascensão das mídias sociais e dos aplicativos de relacionamento redefiniu o "mercado de casamentos", ampliando o campo de busca, mas também introduzindo elementos de gamificação, superficialidade e, por vezes, a "paralisia da escolha".
As questões de gênero e sexualidade são centrais para essa nova sociologia. A legalização das uniões homoafetivas e a crescente visibilidade da diversidade de gênero expandiram a própria definição de "escolha conjugal", ao mesmo tempo em que os papéis de gênero tradicionais continuam a influenciar as dinâmicas de formação de pares.
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